O retorno da 99Food ao mercado brasileiro não é apenas mais uma tentativa de desafiar o domínio do iFood. Ele se sustenta em uma tese estratégica bem definida, apoiada em insatisfações reais de consumidores e restaurantes com o modelo vigente de delivery. O setor é concentrado e marcado por altas taxas cobradas dos estabelecimentos, repassadas em grande medida ao consumidor final. Esse arranjo gera margens estreitas para restaurantes e preços considerados elevados por clientes, o que cria uma demanda latente por alternativas mais acessíveis e justas.
O piloto em Goiânia foi a escolha inicial para validar essa tese. A cidade reúne características de uma capital de porte médio, com diversidade socioeconômica e densidade urbana suficiente para testar diferentes modelos logísticos. Além disso, a 99 já possui forte presença na região com o serviço de transporte, o que facilita a integração de entregadores e usuários na plataforma de delivery. A estratégia combina pragmatismo e oportunidade: reduzir riscos de lançamento em grandes centros e, ao mesmo tempo, aproveitar uma base já consolidada.
O modelo testado em Goiânia é agressivo em condições de entrada. Restaurantes foram isentos de taxas e mensalidades, enquanto entregadores receberam garantias mínimas de remuneração diária mediante volume de entregas. Para os consumidores, a promessa é de preços iguais aos praticados no salão, sem acréscimos artificiais típicos dos aplicativos. Esse tripé busca construir uma rede de confiança entre os três atores essenciais do ecossistema: clientes, estabelecimentos e entregadores. É um movimento de ruptura, que aposta no efeito de rede como motor de crescimento.
O estudo realizado pelo Instituto Locomotiva em parceria com a Abrasel fornece a sustentação empírica dessa aposta. Os dados revelam que 68% dos consumidores já desistiram de pedidos por considerarem o preço elevado nos aplicativos, enquanto 74% percebem que restaurantes cobram mais caro no delivery do que no salão. Além disso, 92% afirmaram que fariam mais pedidos se existisse um app sem taxas para os restaurantes. Entre os próprios estabelecimentos, mais de 80% declararam que reinvestiriam a economia em melhorias e contratações. Essas estatísticas mostram que a frustração não é pontual, mas estrutural.
Por trás da volta da 99Food está a hipótese de que existe demanda reprimida e insatisfação suficiente para sustentar um novo player no mercado. O subsídio inicial de taxas e a garantia de remuneração aos entregadores funcionam como gatilhos para adesão. No entanto, essa estratégia exige capital intensivo e um horizonte de sustentação até que a operação alcance escala. É uma aposta que só se sustenta porque a controladora, a chinesa DiDi, possui fôlego financeiro para bancar esse ciclo de investimento inicial.
Apesar do potencial, os riscos são significativos. Problemas relatados em Goiânia com operadores logísticos terceirizados, como atrasos e descontos nos pagamentos aos entregadores, podem corroer a confiança da base operacional. Além disso, a dependência de subsídios para atrair restaurantes e clientes levanta dúvidas sobre a viabilidade de longo prazo. Se o custo da última milha não for otimizado e a lealdade dos usuários não resistir ao fim dos incentivos, a 99Food pode enfrentar as mesmas dificuldades que a levaram a encerrar a operação no passado.
Se bem-sucedida, a volta da 99Food pode redesenhar a dinâmica do delivery no Brasil. A pressão por preços mais justos forçaria o iFood e outros concorrentes a revisarem comissões e estratégias de fidelização. Restaurantes ganhariam maior poder de negociação e consumidores poderiam se beneficiar de preços mais baixos e transparentes. Em última instância, esse movimento também reforça a necessidade de inovação em logística, tecnologia e modelos de negócio no setor. A 99Food volta ao jogo apostando que insatisfação, capital e execução coordenada sejam suficientes para abrir espaço em um mercado consolidado, mas vulnerável a disrupções.