A exigência de autoria humana em trabalho intelectual não é uma discussão abstrata. Ela já está influenciando setores críticos e altamente regulamentados como a indústria automotiva. Montadoras operam com padrões rigorosos de engenharia, qualidade, rastreabilidade e responsabilidade legal. É exatamente nesse ambiente, onde decisões técnicas têm impacto direto na segurança, que a exigência de conteúdo “escrito e aprovado por um humano” tende a se tornar obrigatória. O avanço da IA generativa muda as regras do jogo, mas não elimina a necessidade de responsabilidade técnica validada por profissionais qualificados.
O caso da Deloitte na Austrália mostrou os riscos do uso de IA sem controle. Um relatório com erros, produzido com auxílio de IA e sem revisão técnica adequada, levou a empresa a devolver parte do contrato ao governo. Esse caso já repercute no setor automotivo, onde auditorias, relatórios técnicos, PPAP, DFMEA e PFMEA dependem de precisão absoluta. Um único erro documental pode gerar recall, parada de linha, multas e riscos à segurança. Por isso, assim como o governo australiano passou a exigir rastreabilidade de autoria, montadoras e sistemistas Tier 1 caminham para exigir garantias contra dependência cega de IA em engenharia, qualidade e conformidade.
Normas automotivas já criam a base para exigir autoria humana formalizada. A IATF 16949 define requisitos de responsabilidade e competência técnica em processos críticos. O APQP requer assinatura de aprovação em cada fase do desenvolvimento. O PPAP exige submissão formal com evidência de engenharia validada. O FMEA, tanto em sua versão AIAG quanto VDA, exige justificativas técnicas rastreáveis. Em todas essas práticas o denominador comum é o mesmo: há um responsável formal pelo conteúdo. Com a entrada da IA, este requisito evoluirá para: “conteúdo assistido por IA só será aceito se houver validação e aprovação humana com rastreabilidade”.
O uso de IA no setor automotivo já é uma realidade, especialmente em simulação, engenharia virtual, análise de dados de qualidade e modelagem de falhas. Porém, a IA generativa traz um risco específico: alucinações técnicas. Se um FMEA, manual de instruções de processo (IWP), metodologia de reparo, relatório 8D ou lições aprendidas forem gerados por IA sem validação humana e entrarem no fluxo produtivo, o efeito cascata pode ser catastrófico. Falhas documentais geram falhas operacionais. E falhas operacionais na indústria automotiva geram risco de vida.
As montadoras vão reagir muito rapidamente. Empresas como Toyota, Stellantis, GM, Ford, Volkswagen e Mercedes-Benz operam sob o princípio da rastreabilidade completa. Se hoje já exigem controle documental rígido para qualquer peça ou processo, amanhã exigirão também rastreabilidade de autoria sobre qualquer conteúdo técnico assistido por IA. A tendência é ver surgir cláusulas como: “IA pode ser utilizada como apoio técnico, desde que a entrega final esteja documentada, validada e aprovada por engenheiro responsável”.
Essa exigência vai aparecer primeiro em áreas sensíveis: desenvolvimento de produto (APQP), análise de falhas (8D), auditorias de processo (VDA 6.3), planejamento da produção (MES), software embarcado (ASPICE) e cibersegurança automotiva (ISO 21434). Em seguida, migrará para contratos com fornecedores. O Término de Homologação passará a incluir: “é obrigatória a declaração de autoria humana e a descrição do nível de uso de IA”.
Essa tendência também atinge times de qualidade e engenharia de fornecedores. A responsabilidade técnica não pode ser terceirizada para uma ferramenta. A IA pode agilizar análise de Pareto, relatos 5 Porquês e relatórios 8D, mas a decisão final deve ser de um engenheiro com CREA. A assinatura humana passa a ser um escudo jurídico e uma exigência de compliance da cadeia automotiva.
Os departamentos jurídicos das montadoras também pressionarão. Se uma peça com falha entra no mercado e causa acidentes, advogados buscarão rastrear todas as decisões técnicas. Descobrirem que relatórios críticos foram construídos “só com IA” será motivo para sanções contratuais e ações legais por negligência técnica. Para evitar esse risco, a indústria adotará políticas de “IA com supervisão humana obrigatória”.
Portanto, no setor automotivo, a resposta é direta. Sim, a exigência “escrito e aprovado por um humano” vai virar requisito formal em projetos de conhecimento técnico. Não porque é moda, mas porque é requisito estrutural de segurança, compliance e responsabilidade. Na indústria que mais elevou padrões de qualidade no mundo, a IA é bem-vinda. Porém, sem autoria humana, ela não terá lugar em decisões críticas.
Esse movimento não reduz a importância da IA no setor, apenas redefine seu papel. A IA será ferramenta de aceleração, mas nunca substituta da responsabilidade técnica. Quem dominar IA com pensamento crítico será dominante no mercado automotivo. Quem terceirizar raciocínio para IA será rapidamente eliminado da cadeia.